Entre Reaças e Petralhas
Em novembro, os Estados Unidos da América terão sua 58ª eleição presidencial. A nação estadounidense, conhecida por seu fast food de qualidade duvidosa, paixão por armas de fogo e amor à democracia e aos direitos de seus cidadãos tem um sistema de votação complexo e intrincado, funcionando por meio de votos indiretos baseados em colégios eleitorais.
Para entender o negócio todo, talvez a forma mais simples seja transportá-lo à nossa realidade. Como funcionaria se tentássemos adotar o sistema de votação americano no Brasil?
Democratas e Republicanos
O artigo 2 da constituição americana define que os candidatos à presidência devem ter nascido no país, devem ter pelo menos 35 anos e serem residentes estadounidenses por um período não menor do que 14 anos. Os requisitos presidenciais são basicamente os mesmos do que são exigidos por aqui, então não haveriam grandes mudanças nessa área. Mas pode-se dizer que as semelhanças param por aí.
Para adaptar as eleições brasileiras ao formato estadounidense teríamos que jogar fora tudo o que imaginamos sobre partidos políticos. Esqueça essa confusão de 35 partidos, com mais traições do que uma temporada de Game of Thrones, siglas que não representam nada, legendas aleatórias, coligações estapafúrdias, mudanças de lado, partidos corinthianos e posicionamentos inconstantes. A política americana é baseada em dois partidos fortes e uma porção de partidos nanicos que não conseguem grande representatividade e dificilmente irão conseguir.
Da mesma forma como praticamente toda a representação politica em Obamaland pode ser associada com democratas ou republicanos, o similar pode ser aplicado no Brasil, dividindo a grande massa de políticos e eleitores atualmente ativos em dois grandes partidos opostos. Para facilitar a imaginação do leitor, podemos chamar esses dois partidos opostos de reaça e petralha. Isso não quer dizer que esses partidos seriam compostos somente por políticos atualmente afiliados ao PSDB e PT, mas sim às polaridades que esses partidos atualmente representam. Assim, partidos com convicções mais socialistas e progressistas, como PSOL, PCdoB e REDE se alinhariam nas trincheiras petralhas, enquanto partidos de orientação mais liberal e conservadora como PMDB, DEM e PR seriam agregados aos quadros dos reaças (percebam que, por aqui, democratas – DEM – e republicanos – PR – ficam do mesmo lado).
Primárias
Mas como essa enorme divergência de partidos de pensamentos tão distintos podem entrar em um acordo sobre quais candidatos eleger? Se mesmo com o atual sistema, certos partidos têm dificuldades em definir seus presidenciáveis (ou até mesmo os seus prefeituráveis[1]Fiquei imensamente supreso em saber que essa palavra realmente existe: http://www.folhadaregiao.com.br/Materia.php?id=97167), como esse problema se solucionaria em um sistema tão polarizado?
Essa é a idéia das eleições primárias. Nela, petralhas disputariam com outros petralhas e reaças com outros reaças, com o intuito de serem os representantes do partido nas eleições presidenciais finais, aonde apenas dois candidatos participam.
No atual contexto da política brasileira, poderíamos encontrar a seguinte disputa entre petralhas e reaças para as eleições de 2018:
Há um pequeno detalhe, porém: Em 1947, o Presidente Truman aprovou a vigésima segunda emenda, limitando o número de mandatos que qualquer presidente poderia exercer para apenas dois. Uma das razões seria a idéia de que permitir indefinidos mandatos poderia levar a uma espécie de monarquia. Hillary e Bill poderiam se revezar indefinidamente no poder e a família Clinton nunca deixaria a Casa Branca, por exemplo.
Assim, dois mandatos (podem ser consecutivos ou não) são o limite para qualquer presidente. Isso não só significa que nunca mais teremos os stand-ups do Excelentíssimo Presidente Obama mas também seria o fim da linha para FHC, Lula e Dilma disputarem novas eleições.
Sem a força política de Dilma e Lula, um outro candidato de ideologia parecida deveria entrar na disputa. Talvez, no atual contexto político, as opções mais viáveis seriam Jaques Wagner ou Aloísio Mercadante, ambos já tendo ocupado a cadeira de ministro-chefe da Casa Civil do governo Dilma. Para a chapa Petralha aqui exposta, escolhi Mercadante, pelo simples motivo que seria mais fácil desenhá-lo.
Lacra Confirma (Top!)
A votação americana possui regras bem distintas das quais estamos acostumados no Brasil. Pra começar, evidentemente, ninguém é obrigado a ir votar, exatamente como uma democracia deveria ser. Assim, o índice de votações nas primárias é baixíssimo, com apenas cerca de 20% da população despendendo seu tempo de Netflix para escolher um candidato para disputar pelo seu partido.
As regras das eleições primárias variam de estado para estado. Nos Estados Unidos há estados que requerem que seus eleitores estejam vinculados ao partido para votar, e outros em que qualquer pessoa pode votar, mas em todos os casos, só é permitido votar em um dos partidos. O processo das primárias não ocorre simultaneamente em todos os estados, se estendendo (no caso deste ano) desde o começo de janeiro até o meio de junho, fazendo as discussões internas dentro dos partidos se prolongarem[2]Eleições primárias americanas por estado: http://www.uspresidentialelectionnews.com/2016-presidential-primary-schedule-calendar/. É um processo longo e chato, que deixaria por mais tempo a timeline do Facebook do cidadão brasileiro mais insuportável do que já é.
Os dois candidatos mais votados de cada partido são os escolhidos para, finalmente, disputar a corrida presidencial. Como é de se esperar, os candidatos derrotados nas primárias declaram apoio ao vencedor de seu partido e a campanha de cada um se estreita. Ao invés do segundo turno das eleições brasileiras atuais, onde há apenas um mês para as idéias dos dois candidatos serem confrontadas, esse processo duraria cerca de quatro meses, com diversos debates, confronto de idéias e, por ser Brasil, envolveria escândalos, troca de acusações, crimes federais e fim de amizades em redes sociais.
As eleições finais ocorrem na primeira terça-feira seguinte à primeira segunda-feira do mês de novembro, um conceito fácil de ser calculado mas que requer ler esta frase ao menos duas vezes para ser entendido.
A votação é feita usando o bom e velho método de papel e caneta, seguido de contagem manual. Os Estados Unidos foi um dos países que recusou o sistema de urnas eletrônicas por considerá-lo inseguro. Ironicamente, são aceitos votos por carta ou por e-mail de cidadãos que moram no exterior. Por conta desse sistema arcaico, a contagem dos votos pode levar dias (vide: Flórida, 2000).
Na segunda etapa do processo o número de eleitores costuma ser bem maior, mas, ainda sem a obrigatoriedade, geralmente ainda fica abaixo dos 50% da população.
Tudo ou nada
Uma característica comum às duas fases das eleições, que é certamente a maior diferença em relação ao atual sistema de votação no Brasil é o uso de um voto indireto. Os votos dos eleitores não são diretamente atribuídos aos seus candidatos, mas passam por uma segunda camada de eleição que é conhecida como “delegados eleitorais”. Assim, cada estado possui um determinado número de delegados. E o candidato que possuir mais votos por estado leva os votos de todos os delegados daquele estado – em um sistema chamado “The winner takes it all”; traduzindo: “fode ou sai de cima”.
O estado do Arizona, por exemplo, possui 11 delegados. Se um candidato receber os votos de 51% da população, ele recebe os votos dos onze, não proporcional. O número de delegados por estado também varia. O estado mais influente é a Califórnia, com 55 delegados, uma influência enorme em comparação a diversos estados com apenas 3. Essa divisão de peso é feita através do cálculo:
No caso americano, o primeiro número é fixo (dois senadores por estado) e o segundo número é proporcional à população. Assim, numa adaptação à República das Bananas, teríamos:
Seguindo essa lógica, o peso de cada estado seria:
São Paulo, com sua imensa população tem direito a 70 cadeiras na câmara dos deputados. Somando-se aos 3 Senadores, ele teria 73 delegados e, considerando que, independente da margem de diferença, o candidato que vencesse no estado levaria todos os 73 votos, a disputa das eleições teria uma grande plataforma voltada ao povo paulista. Os estados mais fracos possuem oito cadeiras na câmara e três senadores, portanto o mínimo de cada estado é de 11 delegados.
A maioria simples garante a vitória. Assim, com um total de 594 delegados, o primeiro candidato a obter pelo menos 298 votos é o feliz novo presidente do Brasil.
Teoricamente, os delegados não são obrigados a votar no candidato que se espera deles. Há estados que possuem leis para evitar essa traição e no geral isso não ocorre, então é uma hipótese que não será levada em conta. A eleição do vice-presidente é feita pelos mesmos delegados em dezembro do ano das eleições e novamente eles podem mudar o voto para vice independente do presidente eleito, mas isso também não ocorre, para o alívio do PMDB americano.
Ey-ey-ey-mael
E se os ideais de um político não se encaixam nem com os Reaças e nem com os Petralhas? Apesar da alta cobertura da imprensa ser dedicada quase exclusivamente aos dois gigantescos partidos principais, há uma infinidade de partidos minúsculos nos Estados Unidos que podem entrar na disputa final das eleições. No Brasil, o mesmo ocorreria com determinados partidos, seja por defenderem bandeiras muito extremistas que não teriam representatividade nos partidos maiores, seja em nome de uma maior indepêndencia. Sem contar que qualquer indivíduo pode se candidatar como um candidato independente sem estar filiado a nenhum partido.
Nas eleições brasileiras, esse seria o destino, por exemplo, do PSTU, que provavelmente se recusaria a ser um Petralha. O único partido nanico com alguma representatividade no cenário nacional seria realmente o PV – e essa característica é refletida na política americana, aonde o “green party” é um dos poucos a ser levado a sério fora do eixo Republicano-Democrata.
Sim, porque dentre os outros concorrentes independentes das eleições americanas estão partidos como o “Prohibition Party”[3]Prohibition Party: http://www.prohibitionparty.org/, fundado em 1869 e altamente baseado em ideais cristãos pregando o fim do consumo de álcool ou o Partido “Rent is too damn high”. Essa liberdade toda para qualquer cidadão se candidatar torna as primárias independentes americanas um circo cômico. Em 2016, o criador do Creative Commons se candidatou prometendo que renunciaria após aprovar uma lei para mudar o financiamento de campanha[4]Canidatura de Lawrence Lessig: http://gizmodo.com/meet-the-first-digital-liberties-presidential-candidate-1723497880. Entre outros candidatos bizarros, há John McAfee (sim, do anti-vírus)[5]John McAfee: http://gizmodo.uol.com.br/john-mcafee-jeff-wise/ e Vermin Supreme, que usa uma bota como chapéu e possui uma plataforma de governo que quer tornar obrigatório a todos os cidadãos americanos escovar os dentes, além de financiamento tecnológico para a construção de uma máquina do tempo e promessa de um pônei para cada americano[6]Vermin Supreme: http://www.verminsupreme.com/.
Para conseguir chegar ao ballot final[7]Ballot é o papel de votação onde cada cidadão preencherá o seu voto. Figuram nos ballots apenas os candidatos aprovados de cada partido., os candidatos independentes precisam ter uma votação considerável nas primárias e serem qualificados nos estados. Republicanos e Democratas são automaticamente qualificados (os Reaças e Petralhas também seriam em nosso cenário), porém para os independentes e partidos nanicos, cada estado possui uma regra de qualificação diferente[8]As regras de qualificação variam conforme o estado e podem ser coisas simples como um número mínimo de votos, uma determinada arrecadação de campanha ou fórmulas complexas que levam em conta até eleições passadas dos partidos. As regras são realmente muito complexas e estudá-las pode lhe garantir horas de diversão sanando as próprias confusões aonde você enfiará seu cérebro. Se te interessar saber mais sobre isso, tem esses dois links aqui: https://ballotpedia.org/Ballot_access_for_presidential_candidates e https://en.wikipedia.org/wiki/Ballot_access e nem todos os partidos terminam as primárias com um representante.
Os eleitores sempre têm a última opção que é o “write-in”, aonde eles ignoram todos os candidatos acima e simplesmente escrevem o nome de quem eles desejam votar. Aí residiria a chance de termos Macaco Tião como presidente do Brasil.
Retroatividade
E se as regras americanas fossem válidas já nas eleições de 2014? Considerando que nas primárias a candidata Petralha tenha sido a Dilma Roussef e o candidato Reaça tenha sido Aécio Neves, o método de pontuação de delegados por estado influenciaria no resultado final?
Analisando o resultado obtido por cada candidato por estado:
Estado | Delegados | Vencedor |
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Acre | 11 | Aécio Neves |
Alagoas | 12 | Dilma Rousseff |
Amapá | 11 | Dilma Rousseff |
Amazonas | 11 | Dilma Rousseff |
Bahia | 42 | Dilma Rousseff |
Ceará | 25 | Dilma Rousseff |
Distrito Federal | 11 | Aécio Neves |
Espírito Santo | 13 | Aécio Neves |
Goiás | 20 | Aécio Neves |
Maranhão | 21 | Dilma Rousseff |
Mato Grosso | 11 | Aécio Neves |
Mato Grosso do Sul | 11 | Aécio Neves |
Minas Gerais | 56 | Dilma Rousseff |
Pará | 20 | Dilma Rousseff |
Paraíba | 15 | Dilma Rousseff |
Paraná | 33 | Aécio Neves |
Pernambuco | 28 | Dilma Rousseff |
Piauí | 13 | Dilma Rousseff |
Rio de Janeiro | 49 | Dilma Rousseff |
Rio Grande do Norte | 11 | Dilma Rousseff |
Rio Grande do Sul | 34 | Aécio Neves |
Rondônia | 11 | Aécio Neves |
Roraima | 11 | Aécio Neves |
Santa Catarina | 19 | Aécio Neves |
São Paulo | 73 | Aécio Neves |
Sergipe | 11 | Dilma Rousseff |
Tocantins | 11 | Dilma Rousseff |
Nas eleições de 2014, Dilma venceu em 15 estados, Aécio Neves em 12. Aécio venceu em São Paulo, o que teria lhe garantido o voto dos 73 delegados do estado. Mas mesmo assim, o resultado final ainda seria favorável à candidata petista:
Dilma Rousseff | 336 | 56.57% |
Aécio Neves | 258 | 43.43% |
Dilma teria a soma de todos os delegados de 15 estados, o que lhe garantiria 336 votos de delegados, o equivalente a 56,57% dos votos gerais. Assim, esse seria um dos casos nos quais o candidato vencedor teve também a maioria dos votos da população. Mas no sistema atualmente adotado nos Estados Unidos, nem sempre isso ocorre.
Por quatro vezes na história o sistema americano já elegeu um candidato que não teve a maioria dos votos do povo, mas que teve uma combinação de votos de delegados suficiente para lhe garantir a vitória. A última vez que isso ocorreu foi em 2000, entre George W. Bush e Al Gore. O candidato democrata teve 50.999.897 votos, contra 50.456.002 do republicano. Porém, os votos de Bush foram suficientes para que ele vencesse em 30 estados, contra 20 de Al Gore, lhe garantindo o voto total de 271 delegados, contra 266 do adversário.
Não é difícil imaginar o mesmo acontecendo no Brasil cedo ou tarde se esse estilo de eleição fosse adotado. Apenas os delegados da região sudeste já seriam o suficiente para garantir a um candidato 191 votos dos 298 necessários. Um candidato que tivesse pouco menos de 50% dos votos absolutos em cada um dos estados da região sudeste teria, no final, zero votos desses delegados. Mesmo com ele obtendo 100% dos votos em outros estados, os votos indiretos poderiam não ser suficientes para compensar essa perda.
O atual sistema eleitoral brasileiro parece não ser o culpado pelos péssimos políticos que estamos elegendo. Apesar de idéias que aparentam ser boas, como eleições primárias e, definitivamente, a não-obrigatoriedade do voto, a eleição indireta americana parece menos democrática do que a bagunça gostosa (eu sei, eu sei) que o TSE organiza por aqui.
Se dependesse de mim, porém, as eleições presidenciais não seriam decididas nem por um sistema nem por outro. Eu provavelmente usaria o método do SBT na Casa dos Artistas: colocaria o Silvio Santos numa tarde de domingo telefonando para dez cidadãos brasileiros aleatórios, anotando e influenciando no voto deles. O que eles escolherem, eu aceitaria.
No Abravanel eu confio.
Mecenas
Agradecimentos
Tabelas
Mais informações
Fontes e referências
↑1 | Fiquei imensamente supreso em saber que essa palavra realmente existe: http://www.folhadaregiao.com.br/Materia.php?id=97167 |
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↑2 | Eleições primárias americanas por estado: http://www.uspresidentialelectionnews.com/2016-presidential-primary-schedule-calendar/ |
↑3 | Prohibition Party: http://www.prohibitionparty.org/ |
↑4 | Canidatura de Lawrence Lessig: http://gizmodo.com/meet-the-first-digital-liberties-presidential-candidate-1723497880 |
↑5 | John McAfee: http://gizmodo.uol.com.br/john-mcafee-jeff-wise/ |
↑6 | Vermin Supreme: http://www.verminsupreme.com/ |
↑7 | Ballot é o papel de votação onde cada cidadão preencherá o seu voto. Figuram nos ballots apenas os candidatos aprovados de cada partido. |
↑8 | As regras de qualificação variam conforme o estado e podem ser coisas simples como um número mínimo de votos, uma determinada arrecadação de campanha ou fórmulas complexas que levam em conta até eleições passadas dos partidos. As regras são realmente muito complexas e estudá-las pode lhe garantir horas de diversão sanando as próprias confusões aonde você enfiará seu cérebro. Se te interessar saber mais sobre isso, tem esses dois links aqui: https://ballotpedia.org/Ballot_access_for_presidential_candidates e https://en.wikipedia.org/wiki/Ballot_access |