Houve uma época em que a medicina não tinha praticamente relação nenhuma com a política. Os mais jovens não devem se lembrar, mas as decisões de quais remédios tomar em caso de determinada doença ou a confiança em uma vacina cabia a médicos e cientistas e não a autoridades políticas. Quem viveu sabe: impossível não sentir saudades de 2018.
No ano de 2020 tudo mudou: médicos foram jogados no meio de guerras partidárias e acreditar ou não em conclusões científicas dependia de quem a pessoa votou. Os únicos cientistas que estavam acostumados a lidar com pressões políticas eram aqueles que estudavam as mudanças climáticas, e agora os infectologistas se tornaram alvo de robôs difamadores muito dedicados. Alguém conhecer o Atila Iamarino nos dias de hoje está menos relacionado com uma explicação científica dada por ele em um nerdcast de 2013; é mais provável que o nome tenha aparecido em um grupo de WhatsApp que contesta o formato da terra.
Enquanto assistimos embasbacados à era do grande delírio, o crescimento do movimento anti-vax e a negação de resultados científicos só porque vão contra convicções pessoais políticas, há de se lembrar que a medicina passou por poucas e boas para chegar até aqui.
Ervas e magia
É difícil dizer quando a medicina moderna surgiu. Uma busca no Google por “First doctor” traz como resultado o nome de William Hartnell, ator que interpretou Doctor Who entre 1963 e 1966. Não é bem o que eu estava procurando, mas que série velha, não?
O grego Hipócrates (460A.C – 370A.C) é considerado o pai da medicina e talvez a primeira pessoa a ignorar o que um paciente está falando e terminar uma consulta dizendo “é só uma virose”. Aquele juramento de ser um médico bonzinho, legal, que trataria a Regina Duarte com o mesmo cuidado que trataria a Fernanda Montenegro, que todos os formados em medicina fazem, se chama “juramento de Hipócrates”[1]Anotação: Trocadilho óbvio removido. Buscar uma piada melhor. Mas a busca por tratamentos médicos vêm até de antes dele.
Desde que o homem das cavernas topou com o mindinho em uma pedra, ele já busca soluções para curar as dores e funcionamentos incorretos do corpo. Antes do homem ser homem a medicina já existia: primatas ficaram bons em usar certas ervas em determinadas condições físicas, mesmo que elas tenham um gosto amargo e pouco valor nutricional[2]https://www.npr.org/sections/health-shots/2013/04/09/176694090/on-call-in-the-wild-animals-play-doctor-too?/. Logo, para o homo-sapiens, o uso de elementos da natureza para tratar mazelas existe desde sempre, apesar de que ninguém ia muito a fundo sobre as causas das doenças: geralmente elas eram associadas com algo totalmente fora de controle: é culpa de Deus, das estrelas, de demônios, de maldições… até o vírus da gripe tem o nome de influenza (em inglês diminuído para flu) porque os italianos achavam que aquele monte de gente ficava espirrando no começo do inverno por influência das estrelas.
Quando foram procurar responsáveis pela Peste Negra, que matou um terço da população européia entre os anos de 1346 e 1353, os estudiosos chegaram à conclusão que o grande culpado era Deus. Mas como Ele estava muito longe, acabaram metendo a culpa nos judeus mesmo[3]https://www.bh.org.il/blog-items/700-years-before-coronavirus-jewish-life-during-the-black-death-plague/, que estavam mais fácil de perseguir. Hitler curtiu.
A era medieval, particularmente, foi um show de horrores da medicina. Lembro-me de uma visita ao castelo de Warwick, na Inglaterra: em uma das salas havia um ator atrás de uma mesa abarrotada de ervas e instrumentos, simulando um médico medieval bradando curas para diversos tipos de mazelas: Amuletos, orações e feitiços poderiam ser usados para qualquer caso; Leprosos deveriam entrar em lockdown e só receber comida pelo iFood; Sanguessugas poderiam ser usados em tratamento cardíacos, para desobstruir veias e tratar de problemas circulatórios; Dependendo do médico, fumar tabaco poderia ser o remédio recomendado (não para câncer de pulmão, imagino). Resumindo: não era uma época boa pra ficar doente, nem o atestado para faltar no trabalho valia a pena.
Imagine, por exemplo, que você estivesse com uma puta dor de cabeça. O doutor poderia recomendar um procedimento chamado trepanação, que é pegar uma broca e abrir um buraco no seu crânio: uma abertura para os maus espíritos poderem sair. Humanos furam suas cabeças há milhares de anos, e esqueletos de pessoas que passaram pelo processo já foram encontrados em culturas muito distantes – e dificilmente isso tenha se originado de um desafio de grupo de WhatsApp. Até o John Lennon recomendou que Paul e Linda McCartney fizessem uma trepanaçãozinha inocente[4]https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2017000500307 (mas ele também já devia estar na fase do LSD). O segredo para tantas pessoas terem passado por isso no passado é que funciona: alivia a pressão craniana, o que melhora no caso de dor. Não a dor de uma broca cortando seus ossos, é claro, afinal o processo era feito sem anestesia.
Um brinde à anestesia
Pouco se fala sobre a importância do desenvolvimento da anestesia, mas ninguém gostaria de viver em um mundo sem ela. Pode parecer óbvio a partir do momento que se pensa na linha do tempo da medicina, mas é aterrorizante imaginar que os procedimentos cirúrgicos surgiram antes das anestesias. Pelo menos antes das anestesias modernas, já que o uso de ópio e ether como forma de alívio das dores existe praticamente desde sempre.
Como é possível ver em filmes de grandes conflitos medievais, o álcool era também normalmente usado como anestésico: seja beber para suportar a dor ou encher a cara até entrar em coma alcóolico. Foi o principal anestésico durante a guerra civil americana, e os soldados tomavam um goró e mordiam um pano enquanto o senhor doutor cortava pernas e braços fora com uma desenvoltura tarantinesca.
A outra terrível opção era passar pelos procedimentos cirúrgicos sem anestesia nenhuma. O paciente sentia tudo por dentro, como se estivesse assistindo um filme da Pixar pela primeira vez. Era algo tão terrível que fez surgir o aterrorizante conceito de “cirurgia surpresa”: os médicos se recusavam a dar informações ao paciente sobre a operação e, no dia D e hora H, simplesmente batiam na porta do incauto doente para uma cirurgia. Tudo isso para evitar que o paciente cometesse suicídio na noite anterior. Em 1810, por exemplo, o cirurgião de Napoleão Bonaparte executou uma mastectomia surpresa na escritora Fanny Burney que relatou o procedimento de forma até desconfortável[5]…a terror that surpasses all description… when the dreadful steel was plunged into the breast—cutting through veins, arteries, flesh, nerves… I began a scream that lasted unintermittingly during the whole time of the incision, and I almost marvel that it rings not in my ears still!… When the wound was made and the instrument withdrawn, the pain seemed undiminished, for the air that suddenly rushed into those delicate parts felt like a mass of minute but sharp poniards… when again I felt the instrument, describing a curve, cutting against the grain, while the flesh resisted in a manner so forcible as to oppose and tire the hand, then, indeed, I thought I must have expired.[6]como descrito no livro The Pain Chronicles, de Melanie Thernstrom.
Foi só lá pela metade do século XIX que as anestesias em processos operatórios viraram padrão, com o uso cuidadosamente administrado de clorofórmio, gases que te apagam por completo, e drogas que colocam no seu martini e você acorda horas depois numa banheira de gelo sem um dos rins, mas não precisou pagar a conta do bar pelo menos, dependendo do bistrô pode até valer a pena.
Da varíola ao coronga
Se você (como eu) nasceu depois de 1978, então nunca ficou preocupado com a varíola. O último caso da doença foi diagnosticado em 26 de outubro de 1977, na Somália, e a erradicação da varíola é um atestado dos grandes feitos da medicina na história e a prova definitiva que as vacinas funcionam sim. Mas essa vitória não foi fácil: ela levou 200 anos de batalhas; inclusive aqui no Brasil, num episódio chamado “Revolta da vacina”: em 1904, o povo, extremamente burro, se recusou a ser vacinado contra uma doença que estava afetando a eles mesmos. Sorte que, mais de um século depois, a população ficou mais inteligente, né?[7]eu chorei de desgosto escrevendo essa frase
Quem desenvolveu a vacina contra a varíola foi Edward Jenner, em 1796. Naquele tempo, o tratamento contra a doença se baseava em triturar e aspirar cascas de feridas de outros doentes, o que, convenhamos, é o princípio básico de uma vacina: colocar no corpo de um ser humano saudável pedaços enfraquecidos do vírus para que o sistema imunológico se prepare quando o vírus de verdade chegar. A grande merda desse processo é que era fácil errar na mão e espalhar ainda mais a doença.
Jenner teve a astúcia de perceber uma análise estatística típica dos comentaristas de NFL: as moças que ordenhavam leite de vaca geralmente não ficavam doentes. Ao invés de falar “olha, que interessante” e abrir o rocket league para mais uma partida como eu geralmente faço, Jenner foi estudar o caso (e provavelmente tentar se engraçar com uma das moças) e descobriu que elas na verdade tinham sido contaminadas com varíola bovina, uma parente distante da varíola humana que não faz mal pra ninguém, coitada. Jenner chegou num piá que ficava lá pelos arredores jogando bola sozinho chamado James Phipps e perguntou se ele queria brincar de ser cobaia. Sem saber como era o jogo, o moleque aceitou: Jenner então infectou-o com o vírus da varíola bovina e, depois de umas semanas, chamou o garoto de novo e infectou ele com o vírus da varíola humana. Eram outros tempos, ninguém se importava muito com ética médica, tava tudo bem. Ainda mais porque James não desenvolveu a doença. E pimba: assim foi criada a primeira vacina; testes iniciados direto na fase 3 com universo de uma pessoa, a Anvisa vai ficar louca da vida quando descobrir isso.
A vacina da varíola foi um marco importante da história da humanidade: só nos últimos 100 anos de história da doença, mais de 500 milhões de pessoas foram desfiguradas ou morreram. Após sua erradicação, a OMS teve que decidir o que fazer com os estoques de vírus que ainda existiam em laboratório. Por um lado, se fossem destruídos, o vírus desapareceria para sempre, por outro, se fossem destruídos, o vírus desapareceria para sempre[8]eu sei, foi de propósito. O único risco seria uma liberação acidental (ou não) dos agentes causadores de varíola – atirar um vidro desses num estádio cheio poderia causar um problemaço. Em 2011, a OMS considerou que esse risco era mínimo (quase inexistente) e manter exemplares da varíola poderia ser útil para pesquisas no futuro.
A forma como as vacinas são desenvolvidas não mudou muito de 1796 até 2020. No geral o processo é o mesmo: infectar pessoas saudáveis com o agente transmissor inativado ou enfraquecido para que o corpo desenvolva os anticorpos contra a doença por conta própria. É assim que funciona a CoronaVac, a principal solução contra o Covid para nós, pobres brasileiros.
O ano de 2020 trouxe uma revolução também no desenvolvimento de vacinas. A começar pela velocidade de produção: antes do covid o tempo para a produção de uma vacina era de, no mínimo, quatro anos. Obter um medicamento confiável em menos de um ano era um absurdo impensável até março do ano passado. Para se ter uma idéia, foi só em fevereiro de 2020 que tivemos a vacina aprovada para conter a epidemia de ebola de 2014. Mas essa epidemia ficou contida na África, então ninguém estava preocupado de verdade.
A maior revolução foi na forma como as vacinas são desenvolvidas: ao invés de usar o princípio causador da doença, as vacinas de RNA mensageiro usam a “receita”. A vacina carrega dentro de si instruções “escritas” em RNA que chegam ao DNA dizendo como é o anticorpo que deve ser produzido. Parece algo extremamente futurista e é. É assim que funciona a vacina da Pfizer e da Moderna, as primeiras produzidas com a nova técnica, o único avanço realmente notável nas vacinas em 224 anos de história.
A guerra contra as bactérias
A Pfizer tem um bom histórico de estar à frente na evolução dos medicamentos. No começo da década de 40, eles foram importantíssimos na produção de penicilina para os soldados americanos na Segunda Guerra, o que ajudou na vitória aliada. A penicilina veio em boa hora: os soldados de ambos os fronts estavam apanhando feio na batalha contra as bactérias. Na guerra, doença matava mais do que bala. Na época, os soldados ainda usavam a sulfonamida, aquele pó branco que você vê os soldados jogando nos ferimentos em filme de guerra. A sulfa não era tão boa assim, não funcionava tão bem, muitas bactérias estavam se tornando resistentes e parecia demais com cocaína, não ia pegar bem gravar “O resgate do soldado Ryan” no Projac.
A Pfizer fabricou mais de 90% da penicilina usada pelos Estados Unidos[9][10]https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2048009/ e beleza, era isso, ele só queria mesmo deixar o currículo lattes mais impressionante. Precisou de um confronto terrível que matasse pessoas com a velocidade do John Wick se vingando por seu cachorrinho para desenterrarem essa descoberta e a aplicarem: tempos difíceis requerem medidas urgentes, a gente sabe disso agora mais do que nunca[11]mais em https://tecnoblog.net/meiobit/433487/penicilina-a-droga-magica-made-in-usa-que-salvou-hitler.
Graças aos antibióticos, fazemos parte de uma geração que até nem se importava tanto em ficar doente: não precisava ir pra escola e a amoxicilina tinha gosto de morango, era uma delícia; um século antes, as crianças tinham as mesmas doenças e a mãe simplesmente falava “é isso, meu filho vai morrer, sorte que eu tenho oito desses, foi bom ter engravidado tanto”. Não entendo o pessoal que fica dizendo “nasci na época errada, bom mesmo eram os anos 1920”.
Placebo pla que te quero
Por falar em remédio bom, sendo um cidadão que toma engov® para todas as situações adversas possíveis: de uma dor de cabeça leve a uma fratura exposta; posso dizer que sou um grande entusiasta de placebos. Para quem não sabe: placebos são substâncias que não possuem nenhuma propriedade farmacológica e ainda assim são aplicadas para um tratamento. Tipo a homeopatia. E placebos funcionam em pelo menos 30% dos casos: são certamente responsáveis pelo maior número de curas médicas da história da humanidade. Aliás: pesquisas apontam que os placebos funcionam mesmo quando sabemos que são placebos. Não é à toa que a palavra “placebo” vem do latim “dar prazer, satisfazer”.
Eles são comumente usados em pesquisas médicas: nosso corpo às vezes consegue ser tão maravilhoso que atrapalha. No caso de uma doença, a partir do momento que começamos um tratamento, o corpo já vai achando que “beleza, o malandro tá tratando disso daqui, então já posso ficar melhor” e melhora. Para o desenvolvimento de novos medicamentos, o placebo é usado como grupo de controle: para os testes de eficácia de uma vacina, por exemplo, 1000 pessoas podem ser vacinadas com o princípio ativo correto e 1000 pessoas com o placebo – a vacina real precisa, obrigatoriamente, fornecer melhores resultados do que o placebo. A eficácia da vacina é definida por quão melhor são esses resultados.
Qualquer coisa pode ser um placebo: pílulas de açúcar, injeções de água, tabletes de farinha, e até cirurgias. Especialmente em casos de dores crônicas, como dor no joelho ou nas costas, os médicos podem fazer uma cirurgia inteira de placebo: eles aplicam anestesia local, imitam os sons de um procedimento cirúrgico (tipo aquele policial do Loucademia de Polícia), e podem até deixar uma marca para parecer que algo foi feito ou mostrar um vídeo do procedimento sendo feito de verdade em outra pessoa – mas eles não fazem nada. É um trabalhoso mundo de faz de conta que dá resultados[12]uau: https://www.bmj.com/content/348/bmj.g3253.
Vai de encontro com outro estudo que mostra que quanto mais complexo o tratamento falso, maiores as chances de resultado positivo[13]https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4633056/. Uma cirurgia placebo funciona melhor do que uma vacina placebo que funciona melhor do que tomar 3 comprimidos placebo por dia que funcionam melhor do que tomar um comprimido placebo por dia que funciona melhor do que tomar uma gota, mesmo que seja administrada pelo Zé Gotinha. Até a cor dos medicamentos influencia em seus resultados: medicamentos azuis estão relacionados com doses noturnas e podem induzir ao descanso enquanto medicamentos vermelhos inconscientemente se ligam com agitação e é por isso que as pílulas de cafeína que eu consumo recentemente foram alteradas para serem alaranjadas ao invés da tradicional cor branca.
É para criar um efeito placebo mais poderoso que tratamentos alternativos geralmente envolvem procedimentos complexos e inusitados, como o uso de copos pressurizados, velas aromáticas, cheques milionários passando mais pra lá do que pra cá e milhares de agulhas perfurando o seu corpo, como se o objetivo fosse lhe transformar em um boneco voodoo de você mesmo.
O poder da oração
Ao contrário do que a definição de placebo pode fazer parecer, rezar não é um placebo. Alguns cientistas diferem nessa concepção – afinal, rezar é um procedimento sem princípios ativos que pode ser empregado na cura de alguém. Voltando para a Idade Média, um dos tratamentos que lhe poderiam ser recomendados seria rezar a Deus pelo perdão, afinal, se Ele te enviou uma doença é porque teve algo que você fez que Ele não curtiu muito.
Passou-se o tempo que curandeiros eram consultados para a cura de doentes, mas até mesmo os tratamentos de cura mais notáveis envolviam processos como chás, ervas, velas, danças e atitudes exóticas.
E é impossível falar de orações em um texto médico sem citar um dos meus estudos favoritos: “Estudo dos efeitos teraupêticos das orações intercessórias em pacientes cardíacos: um ensaio randômico multicêntrico de incerteza e certeza de receber orações”[14]este daqui: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16569567/.
No estudo, pacientes de seis hospitais dos Estados Unidos foram randomicamente colocados em 3 grupos:
- em um dos grupos, eles eram informados que receberiam orações por suas melhoras e, efetivamente, recebiam 14 dias de orações intercessórias.
- em um dos grupos, eles eram informados que poderiam ou não receber orações por suas melhoras e não recebiam orações.
- em um dos grupos, eles eram informados que poderiam ou não receber orações por suas melhoras e recebiam 14 dias de orações intercessórias.
Dos grupos que não sabiam se teriam orações, aqueles que não tiveram intercessões divinas apresentaram complicações em 51% dos casos. Dos que receberam orações, as complicações aconteceram em 52% dos casos. Já do grupo que foi avisado que receberiam orações e efetivamente receberam suas preces, as complicações apareceram em 59% dos casos. Então, se algum dia eu tiver um problema do coração, não rezem por mim. Ou, se rezarem, não me avisem.
Mas uma das partes que mais me fascina nesse estudo é que me entretém muito a idéia de um pesquisador sério entrar em um quarto de hospital com uma prancheta nas mãos, chegar pro pobre paciente com problemas de coração e dizer, com toda a seriedade “Fique tranqüilo. Alguém vai estar rezando por você. Ou não. Talvez. Você nunca saberá!”
Estes cientistas maravilhosos e suas éticas contestáveis
Essas pesquisas científicas incríveis evidentemente não passam batidas pela mente de filósofos procurando trabalho. Pensando em testes com vacinas, por exemplo, é eticamente correto você vacinar uma pessoa com água com açúcar (considerando que ela tenha caído no grupo placebo) e mandar ela embora induzindo-a a acreditar que está vacinada?
Talvez a pergunta a ser feita é: existe outro jeito? Provavelmente não. Mais de duzentos anos depois que Edward Jenner infectou propositalmente o garoto James Phipps com varíola para testar sua vacina preventiva, ainda não tem um jeito melhor de ver se um remédio funciona do que aplicando em uma cobaia e jogando um punhado de vírus na fuça dela.
No caso da febre amarela, os cientistas não acharam crianças enxeridas nas proximidades e tiveram que testar várias soluções neles mesmos: o americano Stubbins Ffirth (1784–1820) queria provar que a doença não era contagiosa, então fez o que qualquer pessoa convicta faria no seu lugar, fez alguns cortes no braço e passou o vômito de doentes ali. “Não me convenceu”, disse a tia de alguém no Facebook, então ele começou a passar o vômito no globo ocular, beber, cheirar, chafurdar no gorfo de doentes. “Não me convenceu ainda”, continuou dizendo a tia de alguém, mas foda-se, a comunidade científica já tava aceitando que a febre amarela não era contagiosa e que o Ffirth era meio lelé.
Anos depois, em 1900, o epidemiologista Jesse William Lazear ouviu o que todo epidemiologista ouviu em 2020: “vai pra Cuba”. Só que ele realmente foi, para estudar a mesma doença. Em busca da forma de transmissão da febre amarela, Lazear deixou-se picar 11 vezes por mosquitos que tinham picado outros pacientes. Ele desenvolveu a febre amarela e morreu, provavelmente esfregando na cara de todo mundo um “eu tinha razão!”.
Entre os resultados positivos de médicos extremamente confiantes em si mesmos, temos o cientista Werner Forßmann, que desenvolveu uma técnica de cateterização cardíaca, e para provar que funcionava, ele colocou um cateter em sua própria veia e foi empurrando ele até chegar no coração. Por isso, ele ganhou um Nobel de medicina em 1956[15]https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/1956/forssmann/facts/.
Mais recente, em 2005, quem ganhou o Nobel de medicina foi o médico Barry Marshall, por ter provado, em 1984, que a úlcera poderia ser causada por uma bactéria, e não só por stress. E, para provar que ele estava certo, ele fez o que qualquer pessoa faria pra ganhar uma discussão no twitter: bebeu um tubo de ensaio com a bactéria H. pylori e desenvolveu uma úlcera. Mas ganhou essa discussão. Em 2020, ele jogou seu carro contra uma cancela do estacionamento de um prédio que levava seu nome depois que o moço do estacionamento não deixou ele entrar, o que provou mais uma vez que Barry Marshall vai fazer o que for preciso para ganhar uma briga[16]2020 foi um ano e tanto para a ciência: https://www.theguardian.com/australia-news/2020/jun/08/nobel-prize-winner-barry-marshall-admits-driving-through-boom-gate.
Quem se inspirou com essas histórias e quiser ser cobaia da Covid-19, ainda dá tempo: basta se inscrever em testes de laboratórios e se voluntariar a ser contaminado com a doença. O FluCamp, em Londres, paga cerca de 4500 dólares para voluntários que aceitem pegar covid em nome da ciência: https://flucamp.com/. E você indo passar ano novo em Trancoso e ficando corongado de graça, né?
Quem não quiser chegar em níveis tão extremos, mas ainda quiser ajudar na história da medicina, não precisa beber o vômito de ninguém. Basta se informar. O ano de 2020 trouxe uma cooperação científica sem precedentes. A internet permitiu que estudos fossem compartilhados e analisados em tempo real por cientistas de todos os lugares do mundo. Foi assim que chegamos tão rápido em uma solução.
É esse também o motivo de tantas informações discrepantes durante todo esse tempo de pandemia: pegamos todas as informações frescas, sem tempo de contestação. Tudo era muito contraditório: primeiro máscaras não funcionavam, depois descobriram que funcionam sim; primeiro o lockdown era um exagero, depois descobriram que era uma solução eficaz; primeiro achavam que a cloroquina não servia pra nada, depois confirmaram que ela realmente não serve pra nada, porque esse idiota está mostrando uma caixa de remédios para uma ema, o que está acontecendo?
O método científico consiste em desenvolver uma teoria e, ao invés de fazer estudos para confirmá-la, os estudos são feitos para refutá-la. É assim que se avança: percebendo os próprios erros.
Para ser um cientista é necessário aceitar que estava errado. Tudo bem você ter duvidado da vacina em algum momento, é difícil acreditar que algo desenvolvido de forma tão rápida realmente dê certo. Duvidar da vacina agora, quando milhões de pessoas estão tomando e resultados positivos começam a aparecer, é insistir em um erro cretino. A teimosia não tem lugar na ciência, a solução para os imbecis restantes é simplesmente se recusar a acreditar nos resultados.
E a vantagem da ciência é que ela não tá nem aí se você acredita ou não: ela funciona da mesma forma.
Sobre
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Agradecimentos
Fontes e referências
↑1 | Anotação: Trocadilho óbvio removido. Buscar uma piada melhor | ||
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↑2 | https://www.npr.org/sections/health-shots/2013/04/09/176694090/on-call-in-the-wild-animals-play-doctor-too?/ | ||
↑3 | https://www.bh.org.il/blog-items/700-years-before-coronavirus-jewish-life-during-the-black-death-plague/ | ||
↑4 | https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2017000500307 | ||
↑5 | …a terror that surpasses all description… when the dreadful steel was plunged into the breast—cutting through veins, arteries, flesh, nerves… I began a scream that lasted unintermittingly during the whole time of the incision, and I almost marvel that it rings not in my ears still!… When the wound was made and the instrument withdrawn, the pain seemed undiminished, for the air that suddenly rushed into those delicate parts felt like a mass of minute but sharp poniards… when again I felt the instrument, describing a curve, cutting against the grain, while the flesh resisted in a manner so forcible as to oppose and tire the hand, then, indeed, I thought I must have expired. | ||
↑6 | como descrito no livro The Pain Chronicles, de Melanie Thernstrom | ||
↑7 | eu chorei de desgosto escrevendo essa frase | ||
↑8 | eu sei, foi de propósito | ||
↑9 | ↑10 | https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2048009/ | |
↑11 | mais em https://tecnoblog.net/meiobit/433487/penicilina-a-droga-magica-made-in-usa-que-salvou-hitler | ||
↑12 | uau: https://www.bmj.com/content/348/bmj.g3253 | ||
↑13 | https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4633056/ | ||
↑14 | este daqui: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16569567/ | ||
↑15 | https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/1956/forssmann/facts/ | ||
↑16 | 2020 foi um ano e tanto para a ciência: https://www.theguardian.com/australia-news/2020/jun/08/nobel-prize-winner-barry-marshall-admits-driving-through-boom-gate |