Os pandas não merecem
Em 2016, pandas deixaram de receber a classificação de “ameaçados de extinção”[1]https://www.bbc.com/news/world-asia-china-57773472. Eles ainda caem na categoria “vulneráveis”, mas à medida que o número de animais da espécie cresce, o risco de extinção diminui. É uma grande vitória da humanidade, por um trabalho feito pela própria humanidade. Fica difícil jogar os méritos da conquista no trabalho feito pelos próprios pandas, uma vez que eles não se esforçam absolutamente nada para a preservação do futuro da espécie. Talvez não seja um abuso dizer que é uma vitória dos homens apesar dos pandas.
Pandas não se importam em procriar, não se esforçam para arrumar parceiros, adoram a solidão e são usados como arma diplomática pela China, que é dona de todos os 1800 animais da espécie[2]mais ou menos por aí que habitam o planeta e todas as eventuais crias que eles têm depois de muitos dates fracassados.
É tanta dificuldade que soa natural levantar a questão: eles merecem tanto trabalho?
Negócio da China
Economicamente, talvez a resposta seja “sim”. Quando o assunto é atrair público, pandas são os Beatles dos animais. Zoológicos conseguem sair de crises financeiras com a adição de pandas. O número de visitantes no primeiro ano de um panda em um zoológico pode aumentar até 70%. O zoológico de Edimburgo, que recebia cerca de 8000 visitantes em um dia qualquer de dezembro viu esse número subir para 56000 em 2011, com a exibição do casal de pandas Tian Tian e Yang Guang[3]dados tirados deste artigo: https://www.theguardian.com/world/2015/aug/25/everything-about-panda-sex-edinburgh-zoo-long-read – e vou falar muito dele aqui.
Mas não é qualquer circo di Napoli que consegue montar uma exibição de pandas. O investimento inicial é alto: para receber um animal, o zoológico de Adelaide, na Austrália, gastou 8 milhões de dólares só na construção de um habitat de exposição do bicho. Provavelmente ele ficava numa cobertura no Leblon.
Pandas são os animais de manutenção mais cara em um zoológico, podendo custar até cinco vezes mais do que cuidar de um elefante e até duas vezes mais do que jantar no aeroporto. Apesar de ursos comuns serem onívoros, os pandas decidiram seguir a cartilha dos veganos e se alimentam exclusivamente de bambu. Sim, além de tudo, quando vão em um churrasco, os pandas levam melancia pra colocar na grelha. Já o bambu, além de gerar péssimas piadas na platéia do Silvio Santos, é bem pobre em nutrientes. Como conseqüência, os pandas comem sem parar, podendo comer até 12 quilos do alimento por dia. Soma-se a tudo isso os gastos em um biólogo entendido do assunto e em delegações chinesas que vão ficar monitorando a saúde do bicho.
Mas, com certeza, ninguém ganha tanto com os pandas quanto a China, essa gigantesca agenciadora da carreira dos ursos, uma verdadeira Tom Parker dos animais. Os pandas pertencem todos ao governo da China e são sempre alugados, num contrato cheio de restrições e que garante que qualquer cria que o animal venha a dar também vai de volta pros chineses. Os contratos de locação dos animais duram pelo menos dez anos, ao valor aproximado de um milhão dólares por ano. Se os pandas tiverem filhos no período de aluguel, pagamentos extras devem ser feitos.
E nem é tão simples: o governo chinês que aprova a ida dos pandas. Então, além de ter grana sobrando e bambu suficiente para construir uma vila na praia, o país deve manter uma boa política com a China, que, se gostar do lugar e achar que vale a pena investir em uma relação diplomática, vai oferecer a oportunidade de alugar um panda, como se esses animais fossem representantes fofos de uma embaixada.
A prática é bem antiga: em 685 (é isso mesmo, não esqueci de colocar o “1” na frente do ano), durante a dinastia Tang, o imperador chinês Wu Zetian enviou um par de pandas ao imperador japonês Tenmu, como forma de estabelecer um contrato de paz entre os impérios[4]China! https://edtimes.in/this-is-how-china-owns-all-the-giant-pandas-in-the-world.
A idéia de dar pandas como presente diplomático voltou com tudo na década de 1970, no governo de Mao Tsé-Tung. Ele inclusive deu um casal de animais até para o presidente Nixon. A prática ficou conhecido como Panda Diplomacy[5]https://en.wikipedia.org/wiki/Panda_diplomacy e foi levemente alterada na década de 80 quando eles perceberam que poderia ser bem mais lucrativo alugar pandas ao invés de sair distribuindo. Quem não curtia muito misturar pandas com política era Margaret Thatcher, que em 1981, numa viagem para visitar Ronald Reagan, se recusou a dividir um avião com um panda[6]Espero ver na próxima temporada de “The Crown”: https://www.nbcnews.com/news/world/margaret-thatcher-refused-take-panda-flight-u-s-n833396 que ia ser levado aos Estados Unidos para procriar (para deixar claro: quem ia procriar era o panda e iria procriar com outro panda, não com o Ronald Reagan). “Pandas e políticos juntos não trazem bons presságios”, teria dito ela.
Quem sabe disso é a Tailândia, que teve a relação com a China levemente abalada depois que o urso panda Chuang Chuang morreu em um zoológico no país em 2019. A China mandou uma delegação inteira para periciar a situação e confirmar que o panda não tinha sofrido maus tratos e mantinha produtos de qualidade na sua dieta. A conclusão, para a sorte da Tailândia, era que o animal tinha sofrido um ataque cardíaco. Antes disso, em 2014, um panda que seria enviado à Malásia ficou no meio de uma tensão internacional. A China não estava gostando do jeito que o país estava trabalhando no caso do sumiço do avião MH370, lotado de chineses. Esse impasse atrasou o envio dos pandas em alguns meses.
Como se não bastasse essa dificuldade toda, há ainda o problema que a China costuma ser sacana. Em 1991, pesquisadores e cuidadores que trabalhavam na reprodução de um panda em um zoológico de Londres descobriram que a panda fêmea chamada Ming Ming, que tinha sido enviada à Inglaterra com o único propósito de reproduzir, era infértil. Não só isso, mas eles também descobriram que a China sabia disso, e os próprios chineses já haviam tentado inseminar artificialmente o animal pelo menos uma dúzia de vezes.
E esse é o segundo problema com os pandas: além de armas políticas, eles tem um problema sério com a reprodução.
Tinder de panda
A minha percepção pessoal sobre pandas começou a mudar em 2015, por conta deste excelente e gigantesco artigo do jornal The Guardian (fortemente referenciado em diversas partes deste texto). Entitulado “Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo dos pandas (mas estava com medo de perguntar)”, ele foi o catalisador responsável por me jogar em uma espiral de artigos sobre pandas que foram aos poucos me ajudando a alimentar o ódio por esses animais.
Se parece que eu não me importo com os pandas, a dura realidade é que os pandas não se importam com os pandas. Eles não estão nem aí para a própria espécie e preferem ficar comendo e rolando morros do que criar vínculos sociais ou tentar arrumar date em barzinho.
Solitários tal qual millenials cansados, os pandas preferem ficar sozinhos e comendo o dia todo do que se reunir para jogar um truco ou assistir uma série. Zoológicos com mais de um animal os mantém em locais separados e organizam os encontros quando a fêmea chega no período fértil. As fêmeas ovulam uma vez por ano, então dá pra imaginar a expectativa dos tratadores por esse momento.
Mas, mesmo com tanta preparação, quando há um encontro, dificilmente rola uma trepada: é raro o macho demonstrar interesse. Em 2020, dois pandas finalmente fizeram amorzinho gostoso no zoológico de Ocean Park, em Hong Kong, sendo um dos únicos casais que conseguiram transar em tempos de pandemia[7]https://www.bbc.com/portuguese/geral-52100140. A grande celebração foi porque esse casal estava sendo shipado há dez anos. Imagina passar uma década inteira de “oi, sumida”, até finalmente rolar algo.
O macho é lento como um blogueiro de texto cômico-científicos, mas a fêmea também não ajuda: por algum motivo ela pode apresentar gravidez psicológica com todos os sintomas, incluindo liberação de hormônios e até produção de leite. Isso movimenta equipes inteiras de biólogos esperando um bebê-panda que não está lá. A mãe-panda também pode reabsorver o óvulo fecundado pelo tecido do útero, o que é praticamente um enredo de filme de terror. Ultrassonografias nem ajudam tanto, já que os fetos são tão minúsculos que fica até difícil vê-los nesses exames.
O tamanho de um bebê panda após nascer é outro empecilho que nos faz questionar como foi possível tal espécie sobreviver por tanto tempo. Eles medem entre 10 a 15 centímetros e nascem cegos, só abrindo os olhos depois de 6 a 8 semanas. Além de cegos, também parecem que não querem ver. Bebês-panda são extremamente sensíveis e têm uma alta taxa de mortalidade, por isso precisam de cuidados e atenção 100% do tempo.
Cuidados que a mãe não está sempre a fim de dar. Também não é incomum para pandas parirem gêmeos, principalmente quando a fertilização acontece em cativeiro, por inseminação artificial. Porém, quando isso acontece, geralmente a mãe simplesmente abandona um dos filhotes porque é coisa demais pra ela prestar atenção[8]aqui: https://www.bbcearth.com/news/the-panda-who-didnt-know-she-had-twins, mas quem sou eu para julgar?. Quando há uma equipe de profissionais por trás, uma técnica comum empregada é ir trocando os bebês sem que a mãe perceba[9]Ver também: The Rehearsal, S01-E02, para que ela vá revezando os cuidados entre os dois filhos, mas achando que só pariu um.
Se eles mesmo não querem procriar e nem cuidar de seus herdeiros, porque nós, seres humanos, gastamos tanto tempo, suor e dinheiro fazendo com que eles se reproduzam? Cuidadores de pandas frequentemente se vestem de pandas para e usam perfume de urina de panda para disfarçar o cheiro e a aparência dos humanos e não angustiar os animais com o contato de outra espécie[10]parece muito uma esquete de Monty Python: https://www.bloomberg.com/news/photo-essays/2016-09-28/dressing-up-in-a-panda-suit-can-really-make-a-difference#xj4y7vzkg. É dedicação demais para uma espécie que preferia não estar mais viva.
O naturalista Chris Packham compartilha do sentimento que a humanidade deve deixar os pandas morrerem, se eles assim o desejarem, como se eles tivessem por conta própria decidido praticar a eutanásia de uma espécie inteira. “Deixe os pandas partirem com um mínimo de dignidade”, diz Packham. Extinção é uma parte da vida na terra. Há outros animais que estão em situações piores do que os pandas mas não recebem tanta ajuda ou atenção porque não são fofinhos. Como também disse o comediante George Carlin: “90% de todas as espécies que já habitaram nosso planeta estão extintas (…) Deixe-as ir graciosamente. Deixem a natureza em paz. Nós já não fizemos o suficiente?”[11]gênio, daqui: https://www.lingq.com/en/learn-english-online/courses/87644/george-carlin-saving-the-planet-232105/ ou se você preferir ouvir ele falando, é melhor ainda
Ninguém está propondo sair por aí com um fuzil e matar todo panda que vê pela frente, é só colocar a mãozinha na consciência e julgar se vale a pena todo esse esforço.
O único animal que parecia estar legitimamente preocupado com o futuro da própria espécie era Pan Pan, uma espécie de Pelé dos pandas, não pela quantidade de gols, mas pelo número de filhos deixados. Mais promíscuo do que um gay da Santa Cecília, Pan Pan era um transão, sempre com o pau na testa. Não podia ver uma fêmea dando mole que lá ia ele, chamar a parceira para uma noite de Metflix. Entre filhos e netos, Pan Pan conta com mais de 130 descendentes, o que significa que se você encontrar um panda em cativeiro, há cerca de 25% de chances dele conter genes de Pan Pan. Imagina o quanto ele não pagava de pensão.
Pan Pan morreu em 28 de dezembro de 2016, aos 31 anos. Na época, ele era o panda macho mais velho do mundo, com o equivalente a mais de 100 anos para um humano.
Transar pra quê?
É muito difícil imaginar como pandas sobreviveram por tantos milênios soltos na natureza tendo toda essa dificuldade para se reproduzir. Mas a reprodução em um ambiente selvagem não segue os mesmos ritos da reprodução em cativeiro. O biólogo George Schaller passou cinco anos observando os animais em seu habitat selvagem na década de 80. Os rituais de acasalamento duram dias, se não semanas.
No meio da neve, escondido entre bambus, como crianças tentando ver um show de stripper em um filme dos anos 90, Schaller testemunhou uma panda fêmea em um período fértil no alto de uma árvore enquanto cinco ou seis machos se estapeavam e jogavam uns aos outros de penhascos, todos lutando para ser o grande fodelão e poder transar com a fêmea. Não parece nada com o marasmo desses animais ignorando uns aos outros em cativeiro.
Talvez seja esse realmente o problema: pandas na natureza vivem a vida de solteiro. É aquele fervo, toda noite passar um perfuminho, mandar mensagem para meia dúzia de contatinhos e sair pra balada encher a cara e tentar colar nas pandinhas até uma delas não ter amor próprio o suficiente para topar ficar com ele. Pandas em cativeiro vivem a vida de casado. Ano após ano, são expostos à mesma fêmea, que fica lá com ele, na segurança de uma vida tediosa.
A destruição do habitat natural dos pandas é, no fundo, a grande responsável pelas dificuldades que os animais enfrentaram nas últimas décadas para sobreviver. Eles parecem não ter tantos problemas reprodutivos nas reservas naturais protegidas da China, longe da presença humana.
No caso dos habitats cuidadosamente planejados de um cativeiro, parece que os homens lutaram tanto pra deixar a vida dos animais mais “fácil” e confortável que talvez atingimos um ponto no qual isso começou a ser danoso para a própria espécie[12]https://www.theguardian.com/science/2021/sep/20/too-much-of-a-good-home-is-bad-for-panda-mating-goldilocks. Obviamente que seria um espetáculo e eu pagaria muito caro para ver pandas se estapeando até a morte, mas é um cenário impossível de se reproduzir em um zoológico – pelo menos sem atrair a atenção da Luísa Mell, e ninguém quer isso. Mas fornecer um ambiente com 100% de conforto não está funcionando e cientistas já começam a estudar cenários com meros 80% de conforto, só pra ver se esses animais fazem alguma coisa. Longe de mim querer ser coach, ainda mais de panda, mas talvez eles precisam fugir da sua zona de conforto.
E se ressoa com você o estilo de vida dos pandas, de uma vida tranquila, comendo o tempo todo, brincando e preferindo fazer nada do que sair por aí em busca de acasalamento, então há uma grande chance de você pertencer à geração Z.
Parece difícil julgar os pandas sendo parte de uma geração que prefere fazer absolutamente qualquer outra coisa do que interagir com semelhantes. A tecnologia – e os smartphones, particularmente – tornaram nossas vidas tão confortáveis que qualquer encontro pessoalmente acaba se tornando um martírio para o jovenzinho médio. O número de jovens que se encontram pessoalmente (em festas ou qualquer outro tipo de reunião) com amigos de forma regular caiu mais de 40% entre 2000 e 2015[13]https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2017/09/has-the-smartphone-destroyed-a-generation/534198/. Eles não sabem mais conviver em sociedade e, tal qual pandas, não sabem o que fazer quando encontram outro da mesma espécie pessoalmente.
O caso é tão sério que o Japão lançou uma campanha para INCENTIVAR jovens a beberem[14]sendo honesto, essa medida foi proposta principalmente como uma tentativa de recuperar parte da economia https://www.nytimes.com/2022/08/19/world/asia/japan-alcohol-contest.html. Tomados por uma preguiça de sair de casa para fazer qualquer coisa, a geração atual também não está procriando. Em 2005, um terço dos japoneses entre 18 e 34 anos eram virgens. Em 2015, esse número pulou para 43% e o número de pessoas que dizia que não pretendia casar também cresceu[15]este artigo aqui é assustadoramente bom e eu não explorei quase nada dele neste texto: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2018/12/the-sex-recession/573949/. Esse desinteresse por lá ganhou o nome de “sekkusu shinai shokogun“, ou “síndrome do celibato”. É curioso que o Japão também é um dos maiores consumidores de pornografia do mundo[16]no Japão que surgiu algumas coisas que você não deve procurar no Google, como o bukkake, o hentai, e o tentacle porn, que eu cito aqui só pra render cliques dos sites de busca e líder mundial no design de sex-dolls ultrarealistas. O sexo solitário, se é que os leitores me entendem, se tornou algo tão banal e acessível que bate a preguiça no jovem de ter todo esse trabalho de relacionar-se[17]Inclusive tem aqui uma notícia falando do hit que se tornou um vídeo de um panda se masturbando: https://www.mirror.co.uk/news/technology-science/science/panda-masturbation-video-released-china-4480699 . Para piorar, também parece estar havendo uma epidemia de disfunção erétil nos jovens e eu só joguei essa frase aqui para que todos nós homens possamos usá-la como desculpa na próxima vez que acontecer conosco.
Cientistas e sociólogos estão realmente bem preocupados com o desinteresse pelo sexo da geração que alguns chamam de iGen – essa molecada que não existiu em um tempo sem internet e já cresceram rodeados por telas.
Pensando por esse ponto de vista, pandas aversos à reprodução devem ter o mesmo sentimento que os jovens têm quando os tios perguntam dos namoradinhos e namoradinhas na ceia de natal. Se já é desconfortável viver com essa pressão, imagina te meterem em um encontro que você não quer, com alguém que também preferia não estar lá e ficarem assistindo, torcendo para o sexo rolar. Porque fazemos isso com os pandas?
Talvez os pandas realmente não mereçam, e essa frase não é mais uma crítica aos pandas, mas deveria soar como uma crítica à humanidade.
Deixem os pandas em paz, nem que seja para eles morrerem virgens.
Mais
Agradecimentos
Fontes e referências